A Importância da Mitologia

Com a dinâmica do nosso dia-a-dia, não pensamos sobre o significado ou a influência dos mitos em nossas vidas. Entretanto quando nos colocamos a refletir, sempre procuramos algum significado maior e intangível para a nossa existência. Como as respostas não são possíveis de serem obtida na internet ou serem compradas por cartões de créditos, é comum que nos deprimamos ou simplesmente aceitemos um pensamento cínico, afirmando: Isso é assim mesmo!

O entendimento do que é o mito e o que ele representou e representa para nós é fundamental para desenvolvermos uma relação mais transcendente e harmoniosa com o cosmos. Por outro lado, as influências culturais sobre as criações mitológicas promoveram uma diversidade de pensamentos conflitantes. Para tentarmos amenizar isso, propomos neste texto uma avaliação abrangente da origem do mito, sua função, evolução e principalmente a sua importância para as nossas vidas.


Para complementar e reforçar este ensaio, indicaremos algumas obras interessantes sobre todos os pontos aqui abordados.
















Os Primórdios do Mito

Para se entender a mitologia é necessário que entendamos primeiramente a evolução da raça humana. O nosso planeta passou por inúmeras fases desde a sua formação geológica. Em cada uma delas há evidências, muitas bem registradas, de diferentes formas de vida. Neste longo ciclo de transformações a presença de hominídeos só foi registrada há 4 milhões de anos, identificados como Australopithecus ou macaco do sul. O surgimento do primeiro Homo Sapiens deu-se somente em 200 mil anos passados e nominou-se de Neanderthalesis. Paralelo a este surgiu na Etiópia, há 150 mil anos, o Homo Sapiens Sapiens, ou seja, nós.

Na genealogia da raça humana é importante destacar que a nossa origem fundamental é negróide, enquanto que o Neanderthal era europeu com pele branca e, em alguns casos, muito bem documentados, com cabelos ruivos. Naturalmente, isso sugere que alguns povos modernos sejam oriundos de um cruzamento entre as espécies Sapiens.



Figura-1: Ilustração das fases da evolução humana a partir do surgimento dos primeiros símios, 10 milhões de anos atrás, até o momento tão desejado por todos, o desprendimento.

Durante quase 100 mil anos fomos contemporâneos do Neaderthal, porém, especulações científicas, afirmam que 40 mil anos atrás, quando chegamos a Europa, fomos responsáveis pela extinção do nosso primo. A nossa supremacia deu-se, sem dúvida, devido a um cérebro mais complexo, com funções mais equilibradas e a capacidade de construir relações causais, ou seja, de causa e efeito.

Apesar de ser uma característica marcante da raça humana, somente a causalidade não nos diferencia de outros animais pois, como já se sabe do behaviorismo, a maioria dos mamíferos é capaz de responder a estímulos e fazer inumeras associações. A característica primordial do nosso cérebro é fundamentalmente a capacidade de tomarmos consciência de nós mesmos. Desta forma nos posicionamos dentro do meio ambiente e principalmente gerenciamos o que nos interessa. Com isso, automaticamente promovemos o aprendizado e conseqüentemente a produção do conhecimento.

A partir da idéia de que já possuíamos um cérebro estruturado, para entendermos melhor o processo mitológico é necessário que voltemos ao Paleolítico e imaginemo-nos em uma caverna, sem iluminação, tendo um simples sonho noturno. Ao acordarmos não conseguiríamos entender o que seriam aquelas imagens, de onde elas vieram e muito menos qual o seu significado. Além deste fato, imagine um dia de tempestade quando ouvíssemos o som de um trovão. Naquele exato momento começaríamos a nos questionar: Quais as causas daqueles fenômenos? O que teríamos que fazer para interagir com eles? Como não conhecíamos a origem de tudo aquilo, começamos a imaginar, primeiramente, que não estávamos sós. Posteriormente, por um questão elementar de sobrevivência, deveríamos mostrar a estes seres invisíveis as nossas intenções. Assim, deram-se início as nossas primeiras interações e os nossos primeiros rituais.


A Função da Mitologia

Diante do entendimento primitivo de que não estaríamos a sós, o homem tentou estabelecer um contato com os “seres” os quais considerava habitarem o mesmo mundo. Imediatamente, por não conseguirem estabelecer um contato eficaz, presumiram que os seres criadores das imagens noturnas e provocadores dos sons nos céus eram superiores e dotados de habilidades “mágicas”. A partir deste momento, considerá-los agentes ativos e responsáveis pela sua sobrevivência, foi somente uma questão de construção causal de um cérebro sofisticado.


Figura-2: Evolução do cérebro humano, o qual ocorreu em tamanho e em complexidade.

A dinâmica dos dias e noites, as estações, as imagens nas nuvens e principalmente a incompreensão da morte, impulsionaram o homem primitivo a criar imagens concretas dos seus superiores. Desta forma criaram-se as primeiras representações simbólicas dos mitos. Primeiramente ossos de animais, depois pinturas, depois esculturas e posteriormente altares e atualmente templos e construções. A partir desta fase, a principal função da mitologia estava definida: interagir de forma pacífica com os seres desconhecidos os quais, aparentemente, controlavam o nosso mundo. Com a estrutura de pensamento criada, os mitos começaram a explicar, de forma satisfatória, toda a origem do nosso mundo e os motivos da nossa existência passageira.

Para muitos, é difícil acreditar que a nossa dependência mitológica possa ser avaliada pela simples análise de resquícios arqueológicos. Entretanto, estudiosos concordam que a descoberta de tumbas do período Paleolítico já indicava alguma espécie de ritual, e portanto um pensamento de diferenciação entre a vida e a morte. Além disso, estudos das pinturas rupestres com diferentes motivos, animais principalmente, provaram que as mesmas não eram apenas decorativas. As tribos que caçavam consideravam alguns animais seres vinculados aos elementos da natureza como: o dia e noite, as estações do ano, etc. Portanto os mesmos deveriam ser enviados pelos seres superiores. A lógica desta análise estava principalmente nos animais que embernavam e só reapareciam em determinadas estações do ano, como exemplo: os ursos e cobras.

As mais antigas representações mitológicas humanas estão representadas em cavernas do período Paleolítico. Na França estão localizadas as mais bem preservadas, com pinturas que representam animais, quimeras e até mesmos mapas astronômicos. As cavernas de Chauvet-Pont-D’arc possuem pinturas de 30.000 anos , enquanto que em Lascaux as mesmas foram datadas em 15.000 anos.


Figura-3: Pintura na caverna de Lascaux, França, representando a constelação de Touro, com destaque para sete pontos na parte superior, representando as sete estrelas que formam as Plêiades.
[ Tese de Doutorado: CONGREGADO, Luz Antequera. Arte y astronomia: evolución de los dibujos de las constelaciones. (1992)].



Definição de Mitologia

Como o entendimento da importância do mito, fica claro que o mesmo foi fundamental para que o homem primitivo pudesse conviver com seu cérebro extremamente sofisticado. Todas as dúvidas e inquietações foram sendo respondidas por inúmeras representações simbólicas e alegóricas. A falta de explicações claramente perceptíveis e concretas para nossa mente, deu espaço ao surgimento de metáforas muito apropriadas com o uso de elementos da fauna e da flora de cada região. Sendo assim, podemos definir a mitologia como:
“...uma organização de imagens e narrativas simbólicas, metafóricas das possibilidades da experiência humana em uma determinada cultura, ambiente e momento histórico” [CAMPELL].


A Evolução da Mitologia

Com a difusão do homem por todo planeta e o posterior isolamento de algumas culturas, as representações simbólicas foram sendo adaptadas. Especificamente na Ásia, na região onde atualmente é o Iraque, as tribos primitivas decidiram formar os primeiros aglomerados urbanos, dando origem à sociedade estruturada como a conhecemos atualmente. Nesta fase, a necessidade de organização obrigou a distribuição das atividades e dos poderes. Para conseguir comandar os grupos mais poderosos começamos a atribuir poderes superiores aos próprios lideres. Por conseqüência iniciou-se uma fase de antropomorfismo dos nossos mitos.

Em 3.500 a.C. a região da Suméria já contava com uma assembléia de deuses comandados por Anu, o deus do firmamento ou do céu, a seu lado estavam Enlil, deus do Ar, Enki, deus das Águas Doces e Magia e Ninhursag, a Grande Mãe. Como pode ser observado na Figura-4, um selo da época, 2500 a.C, os diversos deuses do panteão Sumério, estão representados com atributos humanos. Similarmente, na mitologia egípcia estes deuses eram de nominados de: Nut (céu ou fogo), Chu (ar), Num (água) e Geb (terra).





Figura-4: Tablete de argila com deuses antropomórficos Sumérios; ao centro saindo da água está representado um dos deuses primordiais, Enki.

[Museu Britânico - Sala 56: Mesopotâmia - ME 89115].

Uma observação interessante na mitologia antiga, é que os deuses primordiais, que posteriormente geraram todos os outros, geralmente eram em número de 4, representando respectivamente os elementos concretos percebido pelos sentidos humanos: terra, fogo, ar, água. Este conceito está difundido em todas as culturas do planeta. Tanto os deuses maias, os indígenas e os orixás do Candomblé também tiveram a sua criação determinada por deuses primordiais. Isso reforça que a todos as raças do planeta são oriundas de um único descendente e de um mesmo tipo de cérebro. As diferenças nos mitos estão apenas nas alegorias.

A partir do desenvolvimento das grandes civilizações, ou seja de estruturas sociais com um mesmo padrão de comportamento, os mitos antropomórficos se consolidaram. Atualmente toda mitologia da idade antiga a qual estudamos: grega, egípcia ou romana, está baseada em deuses ou entidades humanas. A relação com os deuses ficou tão próxima nesta fase que se criaram até as figuras dos semideuses, ou seja, filhos da miscigenação entre um deus e um humano; destaque para o herói da Ilíada, Aquiles.


Figura-5: Tablete de argila mostrando o deus do Sol Sumério, Shamash, considerado responsável pela justiça, verdade e retidão. Observe que ele porta em sua mão um malhete, o sol está abaixo e a cruz de quatro pontas acima.

[Museu Britânico - Sala 55: Mesopotâmia - ME 89128].


A proximidade dos mitos ao homem e às imperfeições desse, fizeram com que as civilizações se tornassem bárbaras e se afastassem vagarosamente de suas crenças. Isso foi bem descrito no poema Odisséia, de Homero. O herói Ulisses briga com o deus do mar, Poseidon, e o mesmo o pune, deixando-o por vinte anos perdido em sua navegação.

A partir de 1500 a.C. alguns grupos já pensavam em restabelecer o contato com os antigos seres superiores, agora sem forma, como foi o caso do deus Amom, o oculto, no antigo Egito. Inicio-se neste período um processo de religação ou religião, fortalecido com a idéia do monoteísmo do faraó Akenaton. A idéia consolidou-se com o êxodo do povo de Israel liderado pelo deus de Moisés. Assim, desde aquele tempo, estamos com nossos conceitos e entendimento de universo estruturados em um deus sem forma responsável por tudo que vemos e percebemos.



A Mitologia e o Homem Moderno

Ao analisarmos a forma racional de pensar do homem moderno, devemos nos lembrar que isso teve origem em 500 a.C., quando filósofos da Antiga Grécia começaram a questionar os conceitos mitológicos relativos ao universo e a origem do homem. Com isso, durante os últimos 2.500 anos, com a evolução da escrita, a tecnologia e a organização do conhecimento, a civilização moderna promoveu a morte de inúmeros mitos e deuses primitivos e antigos. Entretanto, apesar da ciência ter-nos respondido a inúmeras questões, os grandes problemas que nos amedrontam, desde as cavernas, ainda estão sem uma resposta satisfatória. As teorias do Big-Bang, evolução das espécies e relatividade, estão cada dia mais próximas de serem invalidadas. O único ponto importante de todo este avanço for a certeza de que os dogmas devem ser eliminados.

Ainda continuamos com a limitação de nossos sentidos em entendermos a complexidade, ou simplicidade, do cosmos. O método científico, com mais de 300 anos de sucesso, é basicamente fenomenologista e estruturado na percepção dos cinco sentidos, portanto, segundo Kant, limitado em sua própria essência. Por outro lado, as religiões são doutrinas dogmáticas onde cada uma alega a sua própria verdade. Com estas duas formas doutrinarias de pensar é certo que morreremos sem as respostas as quais procuramos.

A falta de respostas mais abrangentes e mais estruturadas do que na era primitiva, não significa que não devamos continuar pensando no tema, mas sim que devemos primeiro entender por que isso é tão importante para nós. O estudioso de mitologia Joseph Campbell em uma entrevista respondeu a seguinte pergunta:

- Por que deveríamos nos importar com os mitos? O que eles tem a ver com a minha vida?

Resposta,



- Vá em frente, viva a sua vida, é uma boa vida – você não precisa de mitologia....Um de nossos problemas, hoje em dia, é que não estamos familiarizados com literatura do espírito.....Quando você ficar velho e as suas necessidades imediatas estiverem atendidas, você voltará para a vida interior, aí bem, se você não souber quem você é verdadeiramente, você vai sofrer.

Interessante é que a resposta dada por Campbell já estava descrita no livro bíblico Eclesiastes 12:1:

“Lembra-te também do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que venham os maus dias, e cheguem os anos em que dirás: Não tenho prazer neles.”

Com isso devemos entender que o mundo sempre existiu e irá continuar a existir sem a nossa presença. Porém isso não significa que não façamos parte dele. Para Huberto Rhoden, “o universo não tem sentido sem o homem e o homem não tem sentido sem o universo” . Sendo assim é necessário entender que praticar a mitologia não é fazer rituais de adoração a objetos ou mesmo adorar deuses do passado, mas sim entender que apesar da limitação dos nossos sentidos, somos seres transcendentes e que ainda temos o direito de estruturar a nossa experiência humana de forma a nos tornarmos mais participativos da realidade que nós mesmos criamos. A mitologia está cada dia mais presente em nossa mente. O que mudou foi apenas a sua forma de representação, mas já podemos afirmar, agora de forma mais concreta, que não estamos sós e que existem várias dimensões de nossa vida as quais podemos explorar e nos tornarmos melhores.

Para proferirmos uma outra dimensão à mitologia, devemos entender que o simples ato de viver é divino. A vida se faz todo o dia em frente aos nossos olhos e, apensar disso, nunca o homem conseguiu reproduzi-la a partir de qualquer matéria inanimada. O arqueólogo Chiristian Jacq, em uma de suas obras, descreve como poderemos entender a mitologia de uma forma mais transcendente:

“A força sobrenatural que mantêm a vida não está fora do alcance da inteligência humana. Reside no coração do ser, no seu templo interior. Ao descobri-la o mago (iniciado) constata que a sua ação tem repercussão neste e no outro mundo, como se não existisse qualquer barreira entre eles. Conhecer o deus (luz) da magia é descobrir o poder dos poderes, penetrar o no jogo harmonioso das divindades......Essa magia pode ser definida como a energia essencial que circula no Universo....O Importante é identificar o laço que une todas as coisas, que reúne o conjunto das criaturas numa cadeia de união cósmica....De uma certa forma o mago está em contato com o Arquiteto do mundo.”


Referências Bibliográficas:

BIERLEIN, J.F. Mitos Paralelos. Editora: Ediouro. 1ª. Edição (2003);

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. Editora: Palas Athena – 25a. edição (2007);

GOTTSCHALL, Carlos A. Mascia. Do Mito ao Pensamento Científico. Atheneu Editora. 2a Edição (2004);

JAQC, Christian. Nefertiti & Akhenaton. Editora: BertrandBrasil. 1a. Edição (2002);



RHODEN, Huberto. O Homem. Editora: Martim Claret;

SEGANFREDO, C. As Melhores Histórias da Mitologia Egípcia. Editora L&PM. 1a. Edição (2006);

STEVEN, Mithen. A Pré-história da Mente. Editora: Unesp – 1a. Edição (2003).

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