Ética X Moral

Certa vez um discípulo perguntou ao pensador Confúcio (China, 500 a.C.): - Qual o pedido que ele faria caso tivesse uma chance de encontrar Deus? O mesmo respondeu: - Pediria a ele que as coisas tivessem apenas uma definição e significado. Diante desta resposta, podemos entender a nossa dificuldade em avaliarmos as inúmeras questões angustiantes apresentadas ao longo de nossas vidas. Entre tantas, o entendimento o significado da ética é a que mais nos confunde e, por sua vez, fundamental para vivermos plenamente.

Usualmente, a palavra ética é associada com moral, esta última já muita bem descrita pela antropologia, sociologia e etnologia, porém a maioria dos textos, equivocadamente, as apresenta como sendo a mesma coisa. Isso se deve principalmente a etimologia das duas expressões, ambas em suas origens estão associadas ao modo de viver. A maioria dos estudiosos defendem a identidade de ambas expessões, pois consideram que o termo grego ethos fora traduzido para o latim, moris, após a conquista da Grécia pelo Império Romano, no Sec. II a.C. Entretanto esta afirmação é questionável, do ponto de vista em que as duas culturas eram distintas e Roma, devido ao seu pragmatismo, provavelmente não tenha compreendido a essência da expressão grega, valorizando assim apenas a sua forma. Este tipo de distorção não é mérito apenas da palavra ethos, há reiteradamente uma grande confusão diante das definições de diversos termos gregos, vejamos como exemplo a expressão gnose, reduzido ao significado de “conhecimento”.

A ética vem sendo discutida desde a época de Sócrates, passando por Santo Agostinho, Spinoza, Kant até chegar a Foucault no século XX. Cada um destes pensadores contribuiu com uma abordagem metafísica sobre o tema, mas atualmente a definição de “ética” é praticada sob a forma ordinária da “moral”: “conjunto de costumes, regras e condutas, avaliadas como corretas, por um grupo de indivíduos, de uma determinada cultura, em um determinado período, capazes de organizar e caracterizar uma sociedade”.

Em alguns dicionários, a confusão entre ética e moral é tão evidente que há uma redundância entre na definição dos termos: “conjunto de regras de conduta consideradas como válidas, éticas, quer de modo absoluto para qualquer tempo ou lugar, quer para grupos ou pessoa determinada" (Aurélio Buarque de Hollanda).

Apesar dos problemas de definição, alguns pontos indicam uma grande diferença entre os termos ética e moral. Esta se refere a regras e possui uma estreita relação com o certo e o errado. Avaliando, pode-se claramente verificar que ao longo da história da humanidade inúmeras regras consideradas certas ou morais, em determinadas épocas e culturas, são inaceitáveis atualmente, por exemplo: andar nú, ausência de direto à propriedade, poligamia, etc. Por outro lado a ética está mais ligada ao bem e o mal, neste sentido a mesma refere-se a um conjunto de valores universais, aceitos, compreendidos e válidos em qualquer cultura, em qualquer época e para qualquer ser. Somente o fato desta referir-se a todos os seres já a distingue, inequivocamente, da moral, colocando-a como parte contribuinte na dinâmica do cosmos.

Na história bíblica já encontramos uma importante referencia a ética. No livro dos Gênesis encontra-se a seguinte orientação do criador:
“ E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: de toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.”

O significado deste conselho divino nos sinaliza claramente uma coisa, que o pecado original não referiu-se a nenhum ato sexual entre Adão e Eva, mas sim ao fato de que o homem, a partir de sua tomada de consciência ou razão, passou a relativizar as suas ações sob a ótica do bem e do mal, portanto assumindo para si as conseqüências boas ou ruins disso.

O intrigante no caso da ética é que o criador não nos orientou sobre o que seria bom ou ruim. Não temos um manual, livro ou referência como os das leis morais apresentadas por Moisés nos 10 mandamentos, no código de Hamurabi ou nos atuais códigos legais. O bem e o mal são conceitos percebidos pela humanidade ao longo de seu aperfeiçoamento. Entendemos que matar um dos nossos semelhantes causa-nos problemas, pois ao longo de nossa evolução civilizatória, todo e qualquer nação que praticou a matança indiscriminada pagou com sua autodestruição como: os hititas, egípcios, romanos, otomanos, maias, astecas e até mesmos nossos índios. Naturalmente, nos dias atuais isso já está mais evidente e a maioria das nações procuram resolver suas diferenças com acordos.

Estando a ética ligada ao bem e ao mal, parece-nos que a definição destes é que nos é desconhecida, entretanto estes são apenas conseqüência da ética. Matar um semelhante parece-nos simples de ser percebido como uma ação ruim, mas quando fizemos com os animais, quais as conseqüências que sofremos? Questões como esta, deixam claro que o que é bom ou ruim são resultados de ações éticas ou antiética, também é sobre este ponto onde o entendimento de nossa própria natureza humana precisa ser entendida.

Para compreendermos a ética devemos saber que a essência do universo é a mudança. Segundo o filósofo grego Heráclito : “...tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo... a única coisa constante no universo é a mudança”. O cosmo está em movimento constante, portanto se praticarmos a ética a mudança resultará em evolução, em caso contrário promoveremos a destruição e um recomeço. Dentro de todo este processo, os seres humanos, como qualquer outro ser vivo animal, vegetal ou mineral, possui uma função especifica a qual deve ser cumprida, portanto ao efetuarmos uma ação contra uma outra vida, devemos nos atentar de que não interrompamos a sua missão. Quando matamos para comer, devemos considerar a nossa necessidade, a quantidade e a fase em que se encontra a vida que iremos eliminar. A compreensão e avaliação disso pode ser difícil porém sua percepção é fácil, basta-nos avaliarmos o impacto no meio-ambiente.

O simples fato de entendermos que tudo o que nos cerca possui uma função, evidencia como antiético evitar que a vida e as transformações aconteçam de forma natural. Isso reflete diretamente em nosso cotidiano. O simples fato de construirmos muros, barreiras ou delimitarmos uma fronteira interfere no fluxo de mudança das coisas. Interessante destacar que a filosofia do Feng-Shui já trabalha com esta visão. Mas o que mais nos prejudica não são apenas nossas ações físicas mas sim aquelas contra a nossa própria liberdade. O filósofo Girodano Bruno (1550-1600 d.C.) foi condenado pela inquisição ao afirmar que o modelo civilizatório adotado pelo mundo acidental era controlador. Em seu livro “1984”, Gergre Orweel reedita o que afirmou Bruno, 500 anos antes, e alerta para um sistema de sociedade onde seriamos controlados por um “big brother”. Se percebermos, atualmente isso está sendo cada dia mais praticado com legislações controladoras as quais, aparentemente em busca de uma “pseudo-ordem”, acabam cerceando as nossas funções cósmicas e conseqüentemente retardando a evolução.

As conseqüências de uma saciedade antiética são a violência, a desigualdade e o desequilíbrio ambiental. Moralmente, parecem-nos que estas ações são praticadas por seres desajustados, porém devemos entender isto como uma mera reação da natureza humana transcendental. Parece estranho, porém sempre iremos reagir a qualquer tipo de ação contra nossa liberdade, mesmo de forma inconsciente. Isto é tão certo, pois mesmo com a orientação do nosso próprio criador, comemos o fruto da árvore proibida no paraíso. O pior é que não nos damos conta da nossa transcendência e continuamos a criar novas regrar “morais” e alimentar um círculo vicioso de ações antiéticas.

A ética como imaginada pelos gregos helenísticos é um conceito muito mais abrangente que a moral adotada pelos romanos e toda a civilização ocidental desde então. Esta última, descreve apenas um conjunto de regras de convivência (política) as quais estão submetidas a valores locais e culturais, além disso os animais e as plantas quando envolvidos não as reconhecem . A ética, por outro lado, é um conjunto de processos universais as quais regem um sistema contínuo de mudança harmônica do cosmos, neste sentido todos seres estão envolvidos e são influenciados. A questão mais problemática é que não conhecemos os mecanismos deste processo e, portanto, tentamos organizá-los em forma de regras a quais dão origem aos dispositivos morais do nosso mundo. Para completar a confusão ainda denominamos o agrupamento destas regras como códigos de ética.

Muitas dos processos éticos estão imersos em leis que consideramos espirituais e as quais são adotadas e praticadas por inúmeras linhas religiosas e místicas, com destaque à Cabala judaica. Esta especificamente, tem sua filosofia estruturada no conceito de que o universo além de possuir leis físicas também conta com leis espirituais, entre as quais destacamos a existência de destino e de livre-arbítrio. Em princípio, contraditórios, mas, logicamente, simples de serem explicados em uma outra ocasião.

É importante destacar que segundo aos livros da Cabala, Deus revelou a Adão seus atributos (Sefirot) na configuração de uma Árvore da Vida. Para muitos estudiosos esta é a mesma Árvore do Conhecimento do bem e do mal, ou seja, a Árvore da Ética.

Obviamente, as filosofias e os estudos esotéricos colaboram para entendermos os mecanismos do universo porém, o fundamental é estarmos procurando por isso. Ao começarmos observar o mundo a nossa volta, perceberemos que estamos cercados por seres e fenômenos que escapam a nossa compreensão. A própria ciência (conhecimento) trabalha sobre estas observações estabelecendo regras muito similares aos nossos valores morais. Em ambos os casos pensamos estar compreendendo o universo mas, ao contrário, estamos praticando uma espécie de utilitarismo hedonista.

Um bom exemplo para refletirmos sobre a sociedade, democracia, moral e ética pode ser visto no filme “A Tempestade do Século” (1999), baseado na obra de Stephen King. Observe que a projeção possui mais de 4 horas de duração.

A compreensão do que seja a ética é dificultada pela grande quantidade de textos e pensadores que a considera similar a moral. Naturalmente algumas regras (moral) sinalizam atitudes éticas como: eliminação do trabalho escravo, fim dos sacrifícios humanos e igualdades de direitos entre homens e mulheres. Entretanto os objetivos de cada uma são muito distintos. A primeira objetiva organizar a sociedade e torná-la justa, a segunda, é um processo mais amplo, onde as funções individuais dos seus membros e suas interações são fatores determinantes. Geralmente uma sociedade com muitas regras acaba tornando-se antiética, pois impede que o fluxo de vida siga seu caminho natural. A própria democracia, em várias situações, impõem os interesses morais aos éticos. Segundo o pensamento de Nietzsche o excesso de regras gera o medo e a fraqueza, responsáveis pelo mal, eliminando a vontade e a coragem, necessárias a prática do bem.

Não precisamos ser religiosos ou místicos para sermos éticos, devemos apenas entender que somos parte de um universo em constante mudança onde os processos são totalmente desconhecidos pela razão humana, mas podem ser percebidos e praticados diariamente, independentes das regras morais as quais estamos submetidos. Segundo Kant “devemos agir com o se nossos atos fossem leis universais”. Na prática podemos praticar a ética de algumas maneiras:

- Contemplar: devemos dedicar algum tempo de nossas vidas a contemplação do mundo que nos rodeia, somente assim poderemos perceber a harmonia do cosmos;

- Apreciar a diversidade: devemos saber que a diversidade de raças, formas e vidas representam os diferentes dos atributos divinos. Devemos aprender, respeitar e agradecer por esta incrível variedade.

- Identificar e praticar a vocação: cada um de nós possui uma vocação (um chamado), isso nos impõe uma importante obrigação de identificar e praticá-la, sob o risco de nos tornarmos medíocres.

- Entender o ciclo de vida e morte: tudo que nos cerca está envolvido em um ciclo de vida e morte, portanto morrer e viver são fases de um processo de transformação no qual estamos inseridos. Não entender a morte é não entender a vida.

Historicamente devido a dificuldade em definir e entender a ética, a humanidade criou um conjunto de regras de convivência denominadas de moral. Como o passar dos tempos e o sucesso no domínio de algumas leis físicas, entendeu-se que os processos éticos também poderiam sofrer um controle. Desde então a moral vem sendo praticada como ética, tornando esta, distorcida e humanizada.

Esperamos com estas colocações, colaborar para um olhar mais holístico e metafísico sobre a ética, alertando sobre a alienação proporcionada pelas regras sociais. Além de tudo, é sempre importante contar com uma opção contraditória (dialética) para refletir sobre um assunto pois, segundo Platão, “o ignorante é libertado pela necessidade, o sábio, pela escolha”.

3 comentários:

  1. Venho a muito pesquisando sobre ética e não tenho dúvida de que o Ensaio sobre a questão é claro, objetivo, e oferece ao leitor um conhecimento de forma prazerosa.Muito prazerosa.
    Parabéns a quem redigiu.

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  2. Prezado Marduc..

    Como sempre é um prazer ler seus textos. Nestes, observa-se que você continua " sob ombros de gigantes" e que estás cada vez mais afiado e certeiro.

    Excelente dissertação acerca de ética e do casamento, o qual tive a honra de ouvir em primeira mão de você ano passado.

    Neste escopo, com toda modéstia, sugiro que você poste as leis da atração. O que achas?

    Continue a nos brindar com seus pensamentos e interpretações.

    Abraço;

    Rafael

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  3. Leandro Benincá21 dezembro, 2009 09:32

    Excelente texto, como sempre!!
    Gostaria de "puxar um fiapo de barbante" dele, pra ver até onde conseguimos tecer uma nova fiada.
    No texto você fala em "Identificar e praticar a vocação". Gostaria muito de ler sobre a sua opinião a respeito de "identificar a vocação".
    Na minha opinião, esta prática pode ser um paradoxo para muitos, já que a identificação da vocação requer muito autoconhecimento. Ademais, como não cair na presunção, de assumir seu chamado de algo que você DESEJA e não realmente SERVE??

    Aliás, complicado mesmo deve ser entender o que eu acabei de escrever!

    Um forte abraço!!

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